Carta à Cláudia
- Denise Flores

- 19 de jun. de 2020
- 4 min de leitura
Cláudia querida,
Quanto tempo!
As fotos abaixo representam a evolução da nossa relação. A primeira, a esquerda, foi na noite em que apresentei um trabalho de novas mídias, o cabelo arrumado era para a festa no seu sítio depois da aula. Você adorou minha apresentação e na festa disse que todos deveriam prestar atenção na “mulher inteligente que eu sou”, e ali nasceu nossa amizade. Ficava sem graça de ir para o sítio porque nunca tínhamos conversado, mas depois deste dia, para minha sorte, tudo mudou.
Na foto a direita, em um outro final de semana no sítio, saímos da cozinha para irmos “para a água”, no meio do caminho, sopramos o dente de leão, e voltamos para seguirmos bebendo e conversando.
Ontem, fui dormir pensando em você. Se você estivesse aqui, faria minha mochila e passaria uns dias de recolhimento no sítio com você. Saudades às vezes tem sabor, a que sinto de você tem sabor de pimenta rosa, que você usava quando cozinhava. Ou da farofa de feijão de corda que dividimos enquanto falávamos sobre a vida.
Você alfabetizava adultos. Via o mundo por uma lente muito louca. Insistia em teorias completamente malucas. Enlouquecia professores com a defesa de que “O Quatrilho” foi o melhor filme nacional produzido. Me tirava do sério por passar todo o tempo das provas formais reclamando o quão ineficiente eram as provas formais, e eu ali, nerd, só querendo fazer minha prova.
Com você por perto teria virado mais votos nas eleições do ano passado, porque tenho certeza que você iria pilhar todos nós para fazermos o certo.
Acredito que você tenha muito orgulho de tudo que a “juventude do cinema” vem realizando, você iria enlouquecer com o primeiro longa que estou produzindo. É difícil descrever em palavras a falta que a sua opinião, os seus conselhos e seu ponto de vista fazem na minha vida.
Hoje, me sinto mais confortável comigo mesma, menos careta, mais segura das bandeiras que quero defender, acredito que você já via todo esse potencial em mim, e por isso, sempre puxou o melhor de mim, sempre me incentivou a me abrir e experimentar a vida.
Foi no dia quatro de janeiro de 2010 que você ligou para contar sobre o câncer. Metástase. Nove tumores na cabeça. Naquele momento, jamais poderia imaginar a transformação que aconteceria na minha vida nos seis meses que a vida nos deu entre o seu diagnóstico e a sua partida.
Nós nunca falávamos sobre a doença. Você nunca falou sobre morte, sempre sobre os planos futuros. Lembro quando eu e a Nic fomos te visitar, ainda na casa da sua filha, após a cirurgia, e você chorando, falou sobre a gratidão ao médico que salvará sua vida, pois poderia ter saído da mesa de cirurgia sem conseguir se comunicar com o mundo e se isto tivesse acontecido, seria uma morte em vida.
Depois, quando você foi para a sua casa, íamos te visitar e levávamos cerveja e tira gosto. Seguimos falando sobre a vida.
Então chegou o dia em que você me pediu para te buscar na quimioterapia e te levar ao hospital. Os médicos me receberam em uma sala, falaram sobre a possibilidade do câncer ter voltado, eu deveria te levar imediatamente para uma tomografia.
Entrei no quarto para te encontrar, fazendo um esforço imenso para parecer tranquila. Você me olhou e perguntou se eu tinha notado o quão bonito era o médico assistente e que você precisava me arrumar um namorado da “sociedade dos poetas vivos”.
Fomos ao hospital, enquanto toda a equipe de neurologia se virava em exames, falávamos sobre a questão da legalização da maconha, o plano de mandar o Diogo para Cuba e planejamos uma festa para os seus médicos, regada a run e charuto.
Passamos a noite no hospital. Entre a conversa com o médico, e ler sua pasta de exames, entendi algo que provavelmente você já sabia, para você, morrer não era uma opção, para os médicos, você deveria aproveitar o tempo que ainda lhe restava.
Uma semana depois você me ligou para me contar que o exame de dengue tinha dado positivo, era essa a sua suspeita no dia da internação, mas os médicos não podiam acreditar que com tudo que estava passando, ainda estava com dengue.
Acho que foi a última vez que nos falamos. Em uma semana, a doença avançou, você ficou seriamente debilitada e encantou-se.
Escrevo esta carta chorando de saudades. Das conversas, de dançar como Mick Jagger, de “escutar pobre menina”, de receber ordens na cozinha para te ajudar, da sua comida, de sempre ser atropelada pela velocidade do seu raciocínio.
Você sempre esteve passos à nossa frente, e talvez, por isso, tenha sido a primeira de nós a partir.
Em tempo de recolhimento social, quando estamos mais perto da nossa luz e da nossa sombra, onde rompimentos se fazem necessários porque as relações não se sustentam, e outros laços se tornam ainda mais fortes pela admiração e necessidade de afeto, a saudade das pessoas incríveis que partiram cedo demais se torna ainda maior.
Se é verdade que existe um céu no qual um dia encontrarei todos os meus que partiram antes de mim, que você esteja entre eles, com sorriso no rosto e braços abertos. Que a eternidade nos dê tempo para todas as conversas que ainda não pudemos ter.
Amor é eterno. De cá sigo sigo te amando. Sigo grata pela sua amizade e por tudo que a sua vida e a sua morte me ensinaram. Você foi e sempre será uma pessoa extraordinária!
com amor,
Denise Flores






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