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A velhice como destino

  • Foto do escritor: Denise Flores
    Denise Flores
  • 15 de mar. de 2020
  • 5 min de leitura

Quando era criança convivia com idosos super ativos. Vó Iria fumava e jogava buraco com as amigas. Vô Vicente me dava aulas de português e inglês e andava a cidade inteira de ônibus. Passávamos férias com a Tia Alice fazendo chup-chup e fritando biscoitos. Tia Neném fazia as mais lindas fantasias que já usei. Tia Elza e Tio Domingos cuidavam da roça. Tio Julião era “nosso motorista” e nos levava para a praia. (Tias e tios aqui citados são meus tios-avós, por isso, para mim, já eram idosos).


Durante a infância e a adolescência, não via problemas em envelhecer. Me parecia uma coisa bem tranquila.


A primeira pessoa que vi “definhar” foi a Bisavó Flores, mãe do vô Vicente, nunca tivemos um laço afetivo, mas às vezes almoçava com ela e fazia algumas visitas, muito pelo amor que sempre senti pelo meu avô. A primeira vez que entrei em uma UTI foi para me despedir dela, que voltou para casa, ficou alguns anos sem se comunicar com o mundo em uma rotina de espera pela morte e um dia se foi.


Vó Iria teve alguns infartos que a deixaram debilitada. Sempre a visitava no hospital, durante as várias internações pelas quais ela passou, ouvia “estou dando trabalho, né?.” Virar um fardo para a família é um dos maiores temores dos idosos.

Em 2010 a Vó Iria morreu de dengue hemorrágica. Uma morte não esperada que causou uma confusão na família sobre quais seriam os seus desejos em relação a velório e enterro.


Tanta confusão colocou este assunto como prioritário para o Vô Vicente.


Uma semana antes da morte da Vó Iria, a Cláudia faleceu. Uma amiga super querida, seis meses antes ela havia descoberto oito tumores na cabeça. Cláudia nunca falou em morrer. Lembro dela chorando após a cirurgia, se a cirurgia tivesse dado errado ela perderia a capacidade de se comunicar com o mundo, para ela, isto era o mesmo que a morte.


A doença da Cláudia e ver a vó Iria entubada no UTI, este foi o momento que mudou toda a minha visão sobre a morte. Deixei de tratar a morte como uma possibilidade e a respeitá-la como uma certeza.


Um mês depois destes acontecimentos, o Luquinhas faleceu. A mãe dele, a querida Soraya, me apresentou a Elisabeth Kubler Ross. Foi quando entendi que a morte não é apenas uma certeza, mas que morrer com dignidade é um direito e uma conquista.


Nesta época, meu avô decidiu fazer sua “declaração de vontade antecipada” e tomar todas as providências para deixar sua cremação organizada. Passamos a trocar e-mails sobre estes assuntos. Ele começou a pesquisar sobre ortotanásia, distanásia, eutanásia e suicídio assistido. Queria saber saber como funciona nos demais países e como estava a lei no Brasil acerca destes assuntos.


Meu avô estava saudável. Pesquisava, redigia o texto, levava ao cartório, revisava. Até que suas diretivas antecipadas de vontade foram registradas, assinei como testemunha.


Nunca conversamos sobre a possibilidade da demência, e eis que há quatro anos a vida nos surpreendeu com um diagnóstico de corpos de Levy.


Meu avô tem pânico da ideia de virar o velhinho na cadeira de rodas com uma coberta sobre as pernas tomando Sol. Sempre flertou com a morte, a chama de amiga, e diz que no dia da sua partida tocará “venha, oh, doce morte”.


Semana passada meu avô não conseguiu se levantar. Ajudei a trocar sua fralda. Uma situação que não gostaríamos que acontecesse, mas não tivemos como evitar. Na segunda ele foi ao médico, pela primeira vez não fui acompanhar a consulta. Saí da terapia com uma ligação da minha mãe avisando que meu avô estava indo para o UTI com quadro de insuficiência cardíaca. Fui para a casa dele, ver como estava a Tia Marina, sua irmã.


Ele ficou três noites na UTI e agora está no quarto, por enquanto, sem previsão de alta. Ele está bem. Conversando, implicando por causa do controle remoto da TV, debochando do que dá vontade, lendo e corrigindo todo e qualquer erro de português que chegue aos seus ouvidos.


A semana passada foi uma loucura. Me dividi entre o hospital e a casa da Tia Marina. De um lado meu avô no UTI citando a expressão em latim “morituri te salutant” (os que vão morrer saúdam-te), reclamando sobre a velhice, ele defende que seu problema é a velhice e que velhice é uma droga. Ele não está errado.


Do outro lado, Tia Marina arrumou confusão com a cuidadora, fui lá resolver. Passamos a tarde conversando e rindo. Apesar das muitas risadas ela estava com um brilho diferente nos olhos que não sei explicar, mas que me marcou. Ela e meu avô moram juntos há muitos anos. Ela não teve filhos. Ficou viúva cedo. Às vezes pergunta, se ela precisar, se vamos cuidar dela. Claro que vou, respondo.


Na quinta-feira, que foi o dia mais zoado de toda essa situação, cheguei em casa e chorei. Doença, velhice e hospital desgastam, mas não foi este o meu problema.


Cuidar dos dois demandou um tempo que precisei fabricar. Claro que não estou nesta sozinha. Mas este tipo de situação também transforma as relações familiares em um campo minado de opiniões e experiências diversas.


Tia Marina é uma pessoa controversa. Mas sempre nos demos bem. Tenho afeto por ela e ela por mim. Almoçamos juntas, conversamos, tomamos decisões, sem grandes problemas. Com meu avô no hospital, falamos todos os dias por telefone.


O meu choro não foi pela confusão que ela causou ao brigar com a cuidadora, não foi cansaço. Alguma coisa no seu olhar me causou uma imensa empatia, pois me vi em seu lugar.


A sociedade tem esta cultura de que os filhos devem cuidar de seus pais, então o que está destinado às pessoas que não tem filhos? A tendência é que as famílias fiquem cada vez menores. O que será da minha geração quando a velhice chegar? Seguiremos de mãos dadas ou teremos a solidão e o abandono como rotina?


A perda da autonomia. Não ser escutado e respeitado. Ser anulado pela pressa, mágoa e egoísmo de quem está perto. A velhice traz muitos temores.


Aos trinta sete anos sou capaz de identificá-los e entendê-los. Talvez por isto tenha tanto tato e cuidado com meu avô e com a Tia Marina.


Enquanto meu avô usou a internet, trocamos e-mail’s praticamente todos os dias. O envelhecer dele e da Tia Marina me era retratado linha a linha.


Sigo acompanhando o envelhecimento deles, fazendo por eles o que posso para que estejam bem e tenham suas vontades respeitadas. Vivendo o paradoxo de saber a saudade que meu avô deixará e a certeza que quanto antes ele for, melhor para ele. Ele está bem, mas com uma doença que não vai recuar, e um dia tudo aquilo que ele sempre temeu, poderá se tornar verdade, a total falta de autonomia pelo corpo e pela vida. Como bem disse Philip Roth “a velhice não é uma batalha; é um massacre.”


Quando o coração aperta me lembro de um e-mail em que ele afirma “Você já disse que muito aprendeu comigo, mas pouco se lembra do muito mais que me ensinou. Agradeço demais a Deus ter uma neta como você, diferente em tudo por tudo dos outros”.

Seguimos aprendendo. Enquanto a vida nos permitir.


Denise Flores

15 MAR 2020



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