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Envelhecer, uma lição

  • Foto do escritor: Denise Flores
    Denise Flores
  • 16 de nov. de 2017
  • 4 min de leitura

É meio louco o que vou dizer, mas a verdade é que apenas quando cheguei aos trinta e cinco anos a vida resolveu me ensinar que as pessoas envelhecem.

Não conheci meus avôs paternos, o vô Paulo morreu com menos de quarenta anos, a vó Lourdes viveu um pouco mais, mas não chegou a conhecer nenhum dos netos.

Vó Iria depois dos infartos ficou um pouco debilitada, morreu de dengue hemorrágica, tão rápido, que não deu tempo de envelhecer.

Meu pai morreu com quarenta e nove anos, cedo demais. Minha mãe acabou de chegar ao sessenta, apesar dos benefícios da “melhor idade”, ainda é jovem.

“Sobrou” o vô Vicente. Meu professor particular de português. Um dos maiores amores da minha vida.

Alcoólatra, ele está sóbrio há uns dezoito anos (eu acho). Parou de fumar porque esqueceu que fumava e não comprou mais cigarros.

Ele contava as melhores histórias, fascinado por “O Homem que calculava”, ensinou aos netos a importância da leitura. Sempre estudou, sempre leu muito.

Em 2006 fomos ao cinema juntos pela primeira vez, assistimos “O Segredo de Beethoven” . Voltamos em 2012 para ver “As Aventuras de Pi” em 3D, ele leu que o tigre era digital e queria “conferir de perto”, gostou tanto do “tal 3D” que voltamos outras vezes para ver filmes como “João, o caçador de gigantes”.

Apaixonado por música clássica, fomos à uma ópera e a um concerto no parque.

Ainda tenho a máquina de escrever manual que ele me deu. Para minha felicidade meu avô aprendeu a mexer na internet, e passamos a trocar correspondências quase diariamente. O que facilitou bem a minha vida, já que ele revisava meus textos, sempre colocando as regras ortográficas e gramaticais, que era para eu aprender e não errar mais.

Sempre falamos sobre tudo, e em algum momento, a morte e a nossa finitude passou a ser uma pauta constante. Falávamos sobre morte natural, suicídio assistido, eutanásia, leis sobre o assunto. Dividimos exemplares dos livros “Podemos dizer adeus mais de uma vez” e alguns da Elisabeth Kubler-Ross. Na noite de autógrafos do “A morte é um dia que vale a pena viver”, comprei um exemplar para cada.

Sou testemunha da sua declaração de vontade antecipada. Registrada em cartório, com regras claras sobre o tipo de tratamento que ele pode, ou não, receber, e principalmente sobre o fato de não querer nenhuma medida drástica para continuar a viver. Para nós sempre foi claro que a “sobrevida” ligada a aparelhos não é vida.

Meu avô acompanhou a minha dor quando perdi minha avó, meu pai e tantos amigos queridos. Perder a Cláudia mudou a minha visão sobre a morte, e consequentemente, sobre a vida. Aprendi que a máxima provação da vida é a de morrer bem.

Eu e meu avô sempre dividimos esta visão, e de tanto que ele falou da sua amiga morte, que chegaria e levaria ele de maneira tão rápida, nos esquecemos da possibilidade da velhice.

O último grande e-mail que meu avô me escreveu data de 2016, num tom de despedida ele já falava sobre como a memória se tornava cada vez mais falha. De tão decidido a deixar “tudo preparado” se desfez de muitas coisas, para quando ele morrer não termos o trabalho de pensar “porque será que ele guardou isso?”.

Sempre, incansavelmente, me incentivou a escrever, por isso, me deu de presente suas duas melhores canetas.

Este ano a memória do meu avô virou uma bagunça. Durante duas pneumonias vimos ele torna-se dependente, precisou usar fraldas, precisou de ajuda para comer e tomar banho.

Em uma das vezes que fiquei com ele no hospital, num momento de lucidez plena, falamos justamente sobre isso, sobre o fato dele ser a primeira pessoa que vejo envelhecer no sentido literal da palavra.

Segundo ele mesmo, é uma droga. O corpo já não responde como ele gostaria e todo mundo quer decidir por ele.

Diagnosticado com demência de corpos de lewy, uma doença que resulta na combinação de sintomas Parkinsonianos e da doença de Alzheimer, meu avô passou a ter acompanhantes vinte e quatro horas por dia. Mas ele está bem. Tem uma rotina tranquila. Como, dorme, já não lê seus livros, já não consegue manter conversas longas sobre um mesmo assunto. Mas ele está bem.

Faz muita confusão. Esquece coisas como o fato de ter sido internado duas vezes esse ano. Mas lembra com detalhes de acontecimentos da sua juventude. Mas ele está bem.

Já não se lembra de todos os netos e bisnetos. Ainda escuta música clássica, mas cantarola “Leandro e Leonardo”. Nunca deixou de votar, mas não sabe como o Temer chegou na presidência.

Mesmo não lembrando de alguns nomes, lembra com carinho e pergunta sempre pelas mesmas pessoas. Aliás, fato que demonstra que os laços afetivos são melhor registrados na memória do que os laços de sangue.

Meu avô provavelmente não vai ler este texto, ele anotou em um papel que iria ver meu novo blog, mas sei que ele já tem muita dificuldade para usar o computador. Quem mais me incentivou a voltar a ter um blog, já não sabe o que significa essa palavra.

Há meses escuto que meu avô está bem. Meus tios visitam ele e mandam fotos dizendo que ele está bem.

Não vou contrariar ninguém quanto a isso. Mas só eu sei a saudade que tenho do meu avô, do homem lúcido, das nossas conversas, dos seus conselhos. Do homem mais inteligente com o qual já me relacionei.

Se ele pudesse comentar este texto, teríamos longas conversas sobre a dura lição que é envelhecer, talvez ele concluísse com a citação de um texto que uma vez me enviou “a velhice não é uma batalha; é um massacre.”

 
 
 

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